Ato contínuo ao movimento, os torcedores do Flamengo, apontados pelo Datafolha como os mais volumosos do Brasil (e também do Nordeste), rebateram a publicação com comentários de repúdio. A argumentação dos rubro-negros citava a luta dos próprios times de fora do eixo Rio-São Paulo contra a xenofobia e o preconceito. Segundo os flamenguistas, o Fortaleza estava pagando na mesma moeda. Embora soe plausível, essa linha de argumentação ignora os antecedentes históricos que explicam o fenômeno conhecido como “mistagem”, bem como o dano cultural e econômico que ele causa para clubes de centros futebolísticos menos badalados.
Tabela completa de jogos do Campeonato Brasileiro 2019
O desenvolvimento das torcidas brasileiras se confunde com a dos meios de comunicação do país. Desde que as transmissões de rádio e TV começaram a cobrir todo o território nacional, a partir da década de 1960, sempre houve predomínio do conteúdo produzido nos grandes centros urbanos – especialmente no Rio. Isso, somado ao sucesso internacional de times repletos de craques (caso do Flamengo de Zico, Júnior e companhia, nos anos 1980), explica o fato de o rubro-negro ter também o título de maior torcida do Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Curiosamente, na sua região onde o clube carioca está inserido, o Sudeste, quem lidera o ranking é o Corinthians.
Hoje, mesmo com a grande diversidade de plataformas, a preferência pelo futebol que vêm de “fora do eixo” permanece. Um exemplo: é impossível acompanhar o Re-Pa, clássico entre Remo e Paysandu, os dois maiores clubes do Pará, na Rede Globo. Fora das regiões Sul e Sudeste, apenas os estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Alagoas, Bahia, Ceará e Pernambuco têm transmissões do Estadual, algumas de forma parcial, nas afiliadas da emissora de maior audiência do país. Nos demais estados, a opção disponível é o Campeonato Carioca ou jogos de clubes do Rio em outras competições. Nos primórdios, a ausência de transmissões locais se justificava por limitações econômicas e técnicas. Hoje, soa como a perpetuação do modelo que insiste em enfraquecer os times locais.
E por que enfraquece? Pois essa preferência por clubes do Sudeste impacta diretamente no bolso dos clubes de outras regiões. O abismo financeiro entre os clubes gera um ciclo vicioso: com menos exposição, há mais dificuldade para atrair patrocinadores, contratar atletas, conquistar títulos e… claro, fidelizar e ampliar sua torcida. A “mistagem” aliás, tem um componente “estratégico” na cabeça do torcedor: afinal, quem tem dois clubes pode escolher focar suas atenções àquele que estiver em melhor fase.
Lutar contra este processo enraizado é uma tarefa árdua, mas há quem esteja disposto a brigar. Bahia, Fortaleza e, sobretudo, Athletico Paranaense, são exemplos de clubes que, mesmo com menos recursos que as maiores potências nacionais, conseguiram crescer a partir de boas gestões e agora começam o processo de fortificação de suas marcas. Clubes com menos força que o Fortaleza também adotaram medidas mais radicais de valorização do próprio time, ainda que sem grande destaque em noticiários. O Operário, time paranaense que disputa a Série B do Brasileirão, proibiu a entrada de torcedores com camisas de outros clubes no estádio Germano Krüger – salvo a do time visitante –, por ‘motivos de segurança, identidade e valorização do clube’.
É evidente que o Fortaleza aproveitou-se do fato de enfrentar o clube mais popular do país para aumentar a visibilidade de sua campanha. Afinal, o Flamengo vende (como gostam de vangloriar seus torcedores). Também é certo que o fato de ampliar o número de ingressos destinados aos visitantes rubro-negros (de 6 000 para quase 15 000) abre margem para acusações de hipocrisia da diretoria cearense (estaria ela se beneficiando da “mistagem”?). No entanto, é extremamente positivo que algum clube tente ampliar este debate.
Cada cidadão pode torcer para quem quiser (ou, se preferir, pode ignorar o futebol, como a maioria da população nacional faz atualmente). Mas é preciso entender que a busca pela fidelização do torcedor local não é um ato xenofóbico, mas de valorização da própria marca. O desenvolvimento do futebol “fora do eixo” beneficiaria não só o esporte, mas também a economia e a cultura de todas as partes do país.