Torcida do Flamengo na partida contra o Ceará, no Castelão (Alexandre Vidal/Flamengo/Divulgação)
Fortaleza divulgou uma campanha na última terça-feira 15, contra os chamados torcedores mistos, aqueles que se dizem fãs de um time de fora de sua região além do clube local. Na ação de marketing publicada no Twitter, o restaurante temático da equipe cearense tirou do cardápio o popular sabor “misto” (feito a base de mussarela, presunto e orégano) das pizzas comercializadas no estabelecimento. A iniciativa visa exaltar os “torcedores de verdade”, cuja paixão é direcionada exclusivamente ao Leão do Pici.

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NADA DE MISTOS! ❌


Nessa semana, na lanchonete do @fortalezaec, não vai ter espaço para mistos! “Que seu coração tenha um único dono” 👏👏👏👏👏

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Ato contínuo ao movimento, os torcedores do Flamengo, apontados pelo Datafolha como os mais volumosos do Brasil (e também do Nordeste), rebateram a publicação com comentários de repúdio. A argumentação dos rubro-negros citava a luta dos próprios times de fora do eixo Rio-São Paulo contra a xenofobia e o preconceito. Segundo os flamenguistas, o Fortaleza estava pagando na mesma moeda. Embora soe plausível, essa linha de argumentação ignora os antecedentes históricos que explicam o fenômeno conhecido como “mistagem”, bem como o dano cultural e econômico que ele causa para clubes de centros futebolísticos menos badalados.

Tabela completa de jogos do Campeonato Brasileiro 2019

O desenvolvimento das torcidas brasileiras se confunde com a dos meios de comunicação do país. Desde que as transmissões de rádio e TV começaram a cobrir todo o território nacional, a partir da década de 1960, sempre houve predomínio do conteúdo produzido nos grandes centros urbanos – especialmente no Rio. Isso, somado ao sucesso internacional de times repletos de craques (caso do Flamengo de Zico, Júnior e companhia, nos anos 1980), explica o fato de o rubro-negro ter também o título de maior torcida do Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Curiosamente, na sua região onde o clube carioca está inserido, o Sudeste, quem lidera o ranking é o Corinthians.

Hoje, mesmo com a grande diversidade de plataformas, a preferência pelo futebol que vêm de “fora do eixo” permanece. Um exemplo: é impossível acompanhar o Re-Pa, clássico entre Remo e Paysandu, os dois maiores clubes do Pará, na Rede Globo. Fora das regiões Sul e Sudeste, apenas os estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Alagoas, Bahia, Ceará e Pernambuco têm transmissões do Estadual, algumas de forma parcial, nas afiliadas da emissora de maior audiência do país. Nos demais estados, a opção disponível é o Campeonato Carioca ou jogos de clubes do Rio em outras competições. Nos primórdios, a ausência de transmissões locais se justificava por limitações econômicas e técnicas. Hoje, soa como a perpetuação do modelo que insiste em enfraquecer os times locais.

E por que enfraquece? Pois essa preferência por clubes do Sudeste impacta diretamente no bolso dos clubes de outras regiões. O abismo financeiro entre os clubes gera um ciclo vicioso: com menos exposição, há mais dificuldade para atrair patrocinadores, contratar atletas, conquistar títulos e… claro, fidelizar e ampliar sua torcida. A “mistagem” aliás, tem um componente “estratégico” na cabeça do torcedor: afinal, quem tem dois clubes pode escolher focar suas atenções àquele que estiver em melhor fase.

Lutar contra este processo enraizado é uma tarefa árdua, mas há quem esteja disposto a brigar. Bahia, Fortaleza e, sobretudo, Athletico Paranaense, são exemplos de clubes que, mesmo com menos recursos que as maiores potências nacionais, conseguiram crescer a partir de boas gestões e agora começam o processo de fortificação de suas marcas. Clubes com menos força que o Fortaleza também adotaram medidas mais radicais de valorização do próprio time, ainda que sem grande destaque em noticiários. O Operário, time paranaense que disputa a Série B do Brasileirão, proibiu a entrada de torcedores com camisas de outros clubes no estádio Germano Krüger – salvo a do time visitante –, por ‘motivos de segurança, identidade e valorização do clube’.

É evidente que o Fortaleza aproveitou-se do fato de enfrentar o clube mais popular do país para aumentar a visibilidade de sua campanha. Afinal, o Flamengo vende (como gostam de vangloriar seus torcedores). Também é certo que o fato de ampliar o número de ingressos destinados aos visitantes rubro-negros (de 6 000 para quase 15 000) abre margem para acusações de hipocrisia da diretoria cearense (estaria ela se beneficiando da “mistagem”?). No entanto, é extremamente positivo que algum clube tente ampliar este debate.

Cada cidadão pode torcer para quem quiser (ou, se preferir, pode ignorar o futebol, como a maioria da população nacional faz atualmente). Mas é preciso entender que a busca pela fidelização do torcedor local não é um ato xenofóbico, mas de valorização da própria marca. O desenvolvimento do futebol “fora do eixo” beneficiaria não só o esporte, mas também a economia e a cultura de todas as partes do país.

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