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Ao meu irmão, Relinaldo Oliveira.

Meu pai sempre dizia gostar mais de Garrincha do que de Pelé. Acho que ele gostava do tom zombeteiro do jogador, dele parecer gente comum e, mais ainda, acho que, no fundo, ele gostava mesmo era porque o craque, como ele, criava passarinhos.

Se Garrincha para ele sempre foi algo muito próximo, para mim Pelé encarnava em tudo a ideia do mito inalcançável.

Todos nós brasileiros, de certo modo, assim crescemos ouvindo sobre o mito, o rei.

Em casa, como em milhões de outros lugares, alguns sempre realizavam essa comparação entre o Mané e Pelé.

Em geral, em defesa do ídolo do Botafogo, gritava-se, como uma torcida, sobre a copa de 1962, vencida pelo anjo de pernas tortas.

Mas, ao lembrar de 1970, quase todos se curvavam ao passe mediúnico para Carlos Alberto, ou à cabeçada que, como um passarinho que bate asas, Pelé desferiu contra a Itália.


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Quando crescemos, pós geração de 70, a TV nos fez o favor de trazer as imagens dos gols, dos dribles, do sublime do rei.

Não havia como passar incólume àquilo. Se Garrincha, para muitos injustiçado, permaneceria, merecidamente, no imaginário romântico do futebol, Pelé parecia-nos sempre presente, trazido, também merecidamente, pela imagem.

Pode parecer frustrante que nossa geração apenas pôde vê-lo atuar dessa forma, e não nos esqueçamos que os mais velhos sempre se vangloriaram de ter visto o camisa 10 em sua época, no seu auge.

Mas não sei quantas vezes vi e comentei com amigos o lance, visto em tape (assim se chamavam imagens do passado), o drible que Pelé esculpiu sobre o goleiro uruguaio Mazurkiewicz.

É o famoso lance do drible da vaca sem Pelé tocar na bola. Mas, ao ser chutada, a bola não entra. Teria algo insondável atuado ali? Uma força desconhecida e não percebida, ou um sopro inefável?

Certa vez comecei um debate com meu amigo, o jornalista Marcelo Vieira, sobre um gol que Neymar havia feito pelo Barcelona, em 2015, sobre o Villareal. 

No lance, Neymar recebe uma bola cruzada com força, imediatamente dá um lençol de costas no marcador e, sem deixar a bola cair, fulmina o gol.

O que estava em jogo na conversa não era, evidentemente, se os lances eram iguais, mas o processo (palavra feia para falar de futebol).

Conversávamos como, em ambos os lances, o movimento pôde ser realizado como em um momento quântico da física ou da ficção nos quais tempos se fundem, olhando-se um futuro enquanto ele acontece.

Essa previsibilidade imprevisível está realizada principalmente no lance de 70. Exatamente porque Pelé foi o símbolo da desordem no universo retangular dos gramados, da fantasia incrédula dos olhares, da majestade do sublime sobre o óbvio.

Parece saudosismo. E é. A fantasia é um tipo de sensação que se sobrepõe sempre a um presente, a um momento que não se assemelha ao anterior, quase sempre, sublime.

Li em algum lugar que parece quase impossível, por meios científicos conhecidos, explicar com total exatidão como um pássaro retorna para os mesmos lugares durante as migrações. Diz-se ser algo magnético, quântico.

Talvez também por isso os pássaros estavam perto de Mané Garrincha. Ambos, traçavam caminhos insondáveis. 

Pelé, também. Havia um “inexplicável” avançar que o guiava, como uma bússola, em campo. O que para os “russos” eram incontroláveis movimentos, para ele, era o magnetismo de sua natureza. 

Mas o rei, ao contrário de Garrincha, pôde atravessar a glória e mantê-la em vida, no ar, por mais tempo. E, depois, pairar sobre ela com a recompensa daqueles que cumpriram suas jornadas.

No panteão do futebol, em sua última sublime jornada, sua majestade, em um impossível salto, deve estar passando ao lado do Mané que, ao virar para um lado, vai para o outro, enganando o tempo e o espaço, dando, em um passe para o rei, as asas da eternidade. 

Pelé eterno e sublime.

Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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